Entrevista ao poeta Fernando Naporano por Sandra Santos


Fotografia de Caio Augusto Braga

Fernando Naporano é um autor brasileiro. Jornalista, ensaísta e crítico de cinema & música, atuou também como radialista, director artístico de gravadora e músico. Foi compositor, letrista e vocalista da cultuada guitar-band Maria Angélica Não Mora Mais Aqui com a qual gravou três álbuns.

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Fernando, o que é para você a poesia?

Uma das mais lentas, sedutoras, intimistas e sofisticadas formas de escapismo. A poesia, assim como o cinema, tem a cristalina essência netuniana. Desde meus 7 anos de idade, quando senti-me apaixonado – e devidamente ignorado - pela professora primária, descobri que ao escrever bilhetinhos e versinhos a ela, eu escapava da árdua realidade. No poema, eu não era mais a criança rejeitada, mas um encantador de serpentes. Vivia assim, na seara do sonho, a eternidade do beijo azul.

Ao contrário de todos os ditos poetas contemporâneos – geralmente saturnianos - que se iniciaram na poesia a partir de programadas leituras de autores (para depois os plagiarem da forma mais astuta e discreta possível) ou da ala de nerds-universotários que estudam os fenômenos da linguagem, a poesia, brotou em mim da forma mais natural e espontânea possível, pois naquela tenra idade eu jamais havia lido um livro sequer. Inclusive, quero deixar claro que nunca fui um leitor voraz. Leio, em verdade, muito pouco.



Será que a arte poética (e até artística) é somente acessível a alguns?

Sem dúvida alguma a arte poética é um recôndito para poucos, muito, muito poucos. Um ninho para os que buscam abstrair-se das chatices e diversas entrelinhas proporcionadas pela realidade. Dito isso, devo dizer que nesse milênio, a poesia – e obviamente a Arte de um modo geral – vem sendo utilizada por um excesso de criaturas medíocres que se proclamam pintores, poetas, compositores, atores e por aí vai.

Tenho a amarga impressão que todos viraram artistas. É uma praga! Não há mais controle. Utilizam a Arte, coitada dela, para enaltecerem seus malditos egos, para acompanharem suas “selfies” ou para desfilarem suas cantadas e conquistas e, assim sendo, propagam nas redes sociais a ampla mediocridade de suas “criações”. Artefactos derivativos, na melhor das hipóteses.



De que forma une na sua obra a música, o cinema, a pintura e demais artes à poesia?

Na minha poesia todo o mencionado está deveras presente. Na poesia conjugo e enalteço minha brutal paixão pelo cinema, pela pintura, o cinema e, principalmente, pela música. Alguns de meus poemas, por exemplo, são quadros expressionistas, cubistas ou abstratos. Outros serviriam de falas para um drama de Fassbinder e finalmente, os textos mais passionais, seriam o ideal pano de fundo para músicos do calibre de Lou Reed, Morrissey, Peter Hammill, Roddy Frame ou Gene Clark.



O Fernando liderou com imenso sucesso, nos anos 80, a banda brasileira "Maria Angélica Não Mora Mais Aqui". Poderia fazer um paralelo do contexto musical e artístico da época com o atual? Como é que essa experiência musical influenciou a sua obra poética?

Era um cenário muito mais interessante, instigante e enriquecedor que o atual. A razão é simples. Não havia internet, nem tantas facilidades tecnológicas para se confeccionar um livro ou para se editar um disco pelas próprias mãos. Tanto as editoras e gravadoras, fossem as multinacionais, as de grande poder de distribuição ou as independentes (sem dúvida, as mais expressivas), tinham seus lá comandos artísticos, seus critérios e suas diretrizes de trabalho.

Em resumo, custava muito caro chegar ao produto final e para isso, como já comentado, haviam editores e gravadoras. Mesmo com alta porcentagem de desinformados, inumeráveis erros e duvidosas panelinhas, os responsáveis por tais editoras e gravadoras exerciam um certo, ainda que discutível, controle de qualidade. Algum teor de méritos era necessário para sua música ou o seu livro estarem ao alcance de todos.

Hoje qualquer pateta – sem o mínimo talento - produz o seu próprio livro ou disco e os publica nas tantas plataformas digitais. Se não bastasse isso, hoje vivemos um horror ainda pior, ou seja,  o das centenas de editoras e gravadoras “indies”, onde o porra do pateta burro financia toda a edição e os “capetalistas” donos da coisa, carimbam “o certificado de qualidade” com o nome de suas empresas, abençoando assim obras sem qualquer valor artístico ou cultural. Basta pagar e já está. São muito espertos esse bando de safados que criaram gravadoras e editoras tão somente para captar um produto já pronto e pago pela besta que o fez. Depois basta estampar nele o nominho de suas corporações empresariais.

O resultado é uma “overdose” de “artistas”. Um excesso de obras finais que não passaram por qualquer critério ou justa apreciação. Obviamente, essa abertura -  quase sempre, claro, sem passar pelo crivo de ninguém tem – em escala bem menor - também seu lado positivo. Deve haver gente talentosa por aí, mas dada a vigorosa quantidade de lixos com revestimentos bem articulados e pretensiosos, tais possíveis talentos acabam ou acabarão passando completamente batidos. Muito provavelmente jamais, jamais serão descobertos. Por ninguém.



Ao longo do tempo, assistimos sempre a um culto em massa a certas personalidades. Isso também se verifica no mundo da escrita em que, por vezes, há uma apropriação da voz e do estilo de certos poetas, como é o caso do Fernando Pessoa e do Herberto Hélder, apenas para citar dois nomes.  O que tem a dizer a este respeito?

Oh e não foi o magistral Pessoa que tão bem disse que não pode haver tantos? Não foi Helder, um combativo feroz dos excessos do “mass media”? Esses dois, ao lado, digamos, de Al Berto e Mário Cesariny, são deveras os mais – disfarçadamente - plagiados em Portugal. Há cardumes, incontáveis, por sinal, de poetas e poetisas muito ruins que publicam (geralmente devem custear os próprios lixos) suas aberrações nessas bonitinhas e “cultuadas” editoras independentes apoiadas pelas panelinhas da mídia (sempre tem lá seus contactos e amiguinhos escribas) e  as publicações onde, eventualmente, anunciam.

No Brasil o cenário é idêntico. Ao invés de Helder ou Pesssoa, as vítimas são, - apenas para citar dois nomes, pois há muitos - Hilda Hilst e Roberto Piva. Ou seja, dois autores espetaculares que viveram suas vidas completamente desprezados pelas mídias & mainstream e que, do nada, hoje, tornaram-se vítimas de citações e plágios. Esse artigo final é, delicadamente, interpretado no rol das fontes de influências ou em tecidos de recriações. E claro, as editoras independentes, badaladas pela imprensa, dão o aval ao publicar essas tralhas, luxuosamente, bem embaladas para consumo. Entretanto, essas jostras não vendem nada, apenas ganham centenas de “likes” em Facebook ou Instagram.



O que diria às gerações mais jovens que se estão a estrear no mundo da literatura e da poesia?

Se a carapuça servir ao que falei na questão acima, farão algum sucesso, mesmo que periférico ou limitado ao facebook, pasto oficial dos egos estrelares de vários autores desprezíveis. Se a carapuça não servir, pode-se dizer que as chances de seus trabalhos ficarem confinados ao obscurantismo são grandes. Muito grandes, de fato.



Como acha que a produção literária e artística se pode reinventar em tempos tecnológicos?

Já comentei a respeito disso numa outra pergunta onde isso não havia sido perguntado. Já se reinventou em demasia. A tecnologia deu chance, poder e margem ao surgimento de obras que jamais deveriam ter saído de suas gavetas. É raríssimo encontrar um texto muito bom ou, ao menos, respeitável. É necessário ter-se muitos filtros, uma coleção deles, para encontrar-se algo digno de algum valor. De certa forma, perdi a paciência em usar meus filtros para tal árdua missão.



Para terminar, gostaria de acrescentar algo mais?

Gostaria que as pessoas fossem livres de seus tantos preconceitos, amarras políticas, patrulhas ideológicas e ranços sociais. Se esta utopia se aproximar remotamente do real, a arte poderá, destarte, ser vista de forma límpida e libertária. Arte pela Arte é que eu prego e grito por isso! Não importa que seja de direita ou de esquerda ou de centro ou de sei-lá-o-que. A Obra tem de ser vista enquanto Obra, sem antecedentes e, sobretudo, sem buscar simpatias ou antipatias com o que a pessoa que a criou fez ou fará. Sem pensar ou julgar sua inserção e participação na sociedade.

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