Ana Cristina Cesar (Brasil)
O Homem Público N. 1
Tarde
aprendi
bom
mesmo
é
dar a alma como lavada.
Não
há razão
para
conservar
este
fiapo de noite velha.
Que
significa isso?
Há
uma fita
que
vai sendo cortada
deixando
uma sombra
no
papel.
Discursos
detonam.
Não
sou eu que estou ali
de
roupa escura
sorrindo
ou fingindo
ouvir.
No
entanto
também
escrevi coisas assim,
para
pessoas que nem sei mais
quem
são,
de
uma doçura
venenosa
de tão funda.
*
El
hombre público
Tarde aprendí
qué bueno
es dar el alma
como lavada.
No hay razón
para conservar
esta hilacha de
noche vieja.
¿Qué significa
eso?
Hay una hila
que va siendo
cortada
dejando una sombra
en el papel.
Discursos detonan.
No soy yo que
estoy allí
de ropa oscura
sonriendo o
fingiendo
oír.
Sin embargo
También escribí
cosas así,
para personas que
ni sé más
quienes son,
de una dulzura
venenosa
de tan honda.
--
Flores do Mais
devagar
escreva
uma
primeira letra
escrava
nas
imediações construídas
pelos
furacões;
devagar
meça
a
primeira pássara
bisonha
que
riscar
o
pano de boca
aberto
sobre
os vendavais;
devagar
imponha
o
pulso
que
melhor
souber
sangrar
sobre
a faca
das
marés;
devagar
imprima
o
primeiro
olhar
sobre
o galope molhado
dos
animais; devagar
peça
mais
e
mais e
mais
*
Flores
del Más
despacio escriba
una primera letra
esclava
en las inmediaciones
construidas
por los huracanes;
despacio mida
la primera pájara
bisoña que
risque
el babero
abierto
sobre los
vendavales;
despacio imponga
el pulso
que mejor
sepa sangrar
sobre el cuchillo
de las mareas;
tranquilo imprima
la primera
mirada
sobre el galope
bañado
de los animales;
despacio
pida más
y más y
más
--
Samba-canção
Tantos
poemas que perdi
Tantos
que ouvi, de graça,
pelo
telefone — taí,
eu
fiz tudo pra você gostar,
fui
mulher vulgar,
meia-bruxa,
meia-fera,
risinho
modernista
arranhando
na garganta,
malandra,
bicha,
bem
viada, vândala,
talvez
maquiavélica,
e
um dia emburrei-me,
vali-me
de mesuras
(era
uma estratégia),
fiz
comércio, avara,
embora
um pouco burra,
porque
inteligente me punha
logo
rubra, ou ao contrário, cara
pálida
me desconhece
o
próprio cor-de-rosa,
e
tantas fiz, talvez
querendo
a glória, a outra
cena
à luz de spots,
talvez
apenas teu carinho,
mas
tantas, tantas fiz...
*
Samba-canción
Tantos poemas que
perdí
tantos que oí, de
gracia,
al teléfono — ahí
está,
de todo hice para
que a usted le gustara
fui mujer vulgar,
media-bruja,
media-bestia,
risita modernista
rasguñando en la
garganta,
pícara, bicha,
tan marica,
vándala,
tal vez
maquiavélica,
y un día
embrutecida,
me serví de
mesuras
(era una
estrategia),
hice comercio,
avara,
aunque un poco
bruta,
porque inteligente
me ponía
de inmediato
rubra, o al contrario, frente
pálida me
desconoce
el propio rosa,
y tantas hice, tal
vez
queriendo la
gloria, la otra
escena a la luz de
spots,
tal vez sólo tu
cariño,
pero tantas,
tantas hice…
apaixonada,
saquei minha arma,
minha alma,
minha calma,
só você não sacou
nada.
--
um beijo
que tivesse um blue.
isto é
imitasse feliz a
delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha
surdamente
no reino expresso
do prazer.
espio sem um ai
as evoluções do teu
confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao
sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
--
houve um poema
que guiava a própria
ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me
console,
nenhum,
e saía,
sirenes baixas,
recolhendo os restos
das conversas,
das senhoras,
"para que nada
se perca
ou se esqueça",
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante,
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo.
--
tenho uma folha
branca
e limpa à minha
espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha
espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha
espera.
--
gramas
o coração tem pouca
ironia de tardinha
Segredos carnais à
flor da pele
poemas descarnados
aguardando
a vida recusa
transportar-se para outeiros
buracos cavados por
doninhas
ervas que florescem
o coração tem
pouquíssimo fôlego na piscina
Nos quintais dispara
úmido
Nas salas fechadas
cuida das buzinas
a vida se encarrega
das janelas
mas acaba descendo em
correria
não cabe não suporta
não tem peso
--
Estou vivendo de hora
em hora, com muito temor. Um dia me safarei - aos poucos me safarei, começarei
um safári.
--
Tu queres sono:
despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia,
tira da tua boca
o punhal e o
trânsito, sombras de
teus gritos, e
roupas, choros, cordas e
também as faces que
assomam sobre a
tua sonora forma de
dar, e os outros corpos
que se deitam e se
pisam, e as moscas
que sobrevoam o
cadáver do teu pai, e a dor
[ (não ouças)
que se prepara para
carpir tua vigília, e os
[ cantos que
esqueceram teus
braços e tantos movimentos
que perdem teus
silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que
te olham da janela
e em tua porta
penetram como loucos
pois nada te abandona
nem tu ao sono.
--
a gente sempre acha
que é
Fernando Pessoa
--
Fisionomia
Não é mentira
é outra
a dor que doi
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói
--
Fagulha
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de
leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos
mover-me um pouco,
com aquela parcimônia
que caracterizava
as agitações me
chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento
redondo
como as ondas
que me circundavam,
invisíveis,
abraçar com as
retinas
cada pedacinho de
matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o
invislumbrável
no levíssimo que
sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz
que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos
do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter
descerradas as cortinas
na impossibilidade de
tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência
mortal.
--
Soneto
Pergunto aqui se sou
louca
Quem quer saberá
dizer
Pergunto mais, se sou
sã
E ainda mais, se sou
eu
Que uso o viés pra
amar
E finjo fingir que
finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou
fingida
Pergunto aqui meus
senhores
quem é a loura
donzela
que se chama Ana
Cristina
E que se diz ser
alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?
--
Encontro de
assombrar na catedral
Frente a frente,
derramando enfim todas as palavras,
dizemos, com os
olhos, do silêncio. que não é mudez.
E não toma medo desta
alta compadecida passional,
desta crueldade
intensa de santa que te toma as duas
mãos.
--
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer,
sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja
mais um desaparecido
Da lista de mortos de
algum campo de batalha
Para que eu não fique
exposto
Em algum necrotério
branco
Para que não me
cortem o ventre
Com propósitos
autopsianos
Para que não jaza num
caixão frio
Coberto de flores
mornas
Para que não sinta
mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça
reboando eternos
Os ecos de teus
soluços
Para que perca-se no
éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se
bruscos
As marcas do meu
sofrer
Para que a morte só
seja
Um descanso calmo e
doce
Um calmo e doce
descanso
--
imagino como seria te
amar
teria o gosto
estranho das palavras
que brincamos
e a seriedade de
quando esquecemos
quais palavras
imagino como seria te
amar:
desisto da ideia numa
verbal volúpia
e recomeço a escrever
poemas.
--
Fevereiro
Quando desisto é que
surges
Quando ruges é que
caio.
Quando desmaio é que
corres
Quando te moves me
acho
Quando calo me curas
E se te misturo me
perco
(assobia!)
--
Queria falar da morte
e sua juventude me
afagava.
Uma estabanada,
alvíssima,
um palito. Entre
dentes
não maldizia a
distração
elétrica, beleza
ossuda
al mare. Afogava-me.
--
é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda
descoberta
a anoitecer sobre a
cidade
em construção
sobre a pequena
constrição
no teu peito
angústia de
felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama
--
definição
poeta é onda
onda é canto
canto é espera
espera é adeus
adeus é morte
morte é nódoa
nódoa é ostra
ostra é ensaio
ensaio é busca
busca é poeira
poeira é poeta
--
Por que essa falta de
concentração?
Se você me ama, por
que não se concentra?
--
Ciúmes
Tenho ciúmes deste
cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
--
Esqueceria outros
pelo menos três ou
quatro rostos que amei
Num delírio de
arquivística
organizei a memória
em alfabetos
como quem conta
carneiros e amansa
no entanto flanco
aberto não esqueço
e amo em ti os outros
rostos
--
E penso
a face fraca do
poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura
flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do
poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície
negra
pânico iminente do
nada.
--
Como rasurar a
paisagem
a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à
simetria
secreto desejo do
poema
censura impossível
do poeta
--
Psicografia
Também eu saio à
revelia
e procuro uma síntese
nas demoras
cato obsessões com
fria têmpera e digo
do coração: não sou e
digo
a palavra: não digo
(não posso ainda acreditar
na vida) e demito o
verso como quem acena
e vivo como quem
despede a raiva de ter visto
--
Estou atrás
do despojamento mais
inteiro
da simplicidade mais
erma
da palavra mais
recém-nascida
do inteiro mais
despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais
da palavra
--
olho muito tempo o
corpo de um poema
até perder de vista o
que não seja corpo
e sentir separado
dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
--
Chove
A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.
--
Ana Cristina Cesar
(Rio de Janeiro, Brasil; 1952-1983)
Tradução: Sandra Santos