Rui Knopfli (Moçambique)


Testamento


se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.

se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.

se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.

se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,

pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que não me repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.






*





Progresso


Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio no pulso.





*





O poeta é um fingidor


Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constrangera alma,
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo
e me entreteço de tristeza.




*





Despedida


Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.





*




Telegrama


Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.





*





Aprendiz na oficina da poesia


Não rimes.
Ou rima, se quiseres,
mas não violentes
a palavra.
Não busques ansioso,
qual amante inexperiente,
a palavra.

Espera antes
a sua vinda.

Música e rima
são acessórios dispensáveis:
O poema é outra coisa.

Deixa, pois
que as palavras acordem
na matriz
e caiam maduras.
Áridas ou frias,
secas e imperturbáveis,
orvalhadas, humildes,
estropiadas até,
que sejam precisas,
prenhes de significado.

Espera as palavras.
Elas viajam misteriosas,
desconhecidas ainda,
elas germinam
em ti.

Caem. Juntam-se.
Doloridas, feias
sob o visco placentário,
deselegantes por vezes,
elas procuram-se
e organizam-se.

Juntas transcendem-se,
há algo de íntimo,
coeso e secreto
nelas.

O poema está aí.






*





Monólogo


Adivinho teu corpo dentro
da noite. Soltos os cabelos
cor de areia fina, delidos
os contornos no linho do lençol.
Dormes tranquilamente. Tudo em
mim é presença tua. E, enquanto
dormes, algo de mim habita
e persiste em ti. Tu dormes
e eu espreito teu sono. Algo
de fluido nos liga e envolve.
Vejo-te lucilar na noite,
teus longos inteiriçados membros
fremindo. Momento breve que perdura.
Depois acordas cinzenta,
banhada em pranto,
oferecendo o perfil suave
ao beijo morno de um céu
onde a aurora se demora.





*





Amor das palavras


Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor de teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.






*





Sem nada de meu


Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.





*






Rui Knopfli 
(InhambaneMoçambique; Lisboa, Portugal; 1932-1997)

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