Adélia Prado (Brasil)


Humano

A alma se desespera,
mas o corpo é humilde;
ainda que demore,
mesmo que não coma,
dorme.


*


Artefato nipônico

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.


*


Parâmetro

Deus é mais belo que eu.
e não é jovem.
isto sim, é consolo.


*


Senha

Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
eu quero ser chamada rosa e flor
eu vou gerar um cacto sem espinho.


*


Formas

De um único modo se pode dizer a alguém:
                              “Não esqueço você.”
A corda do violoncelo fica vibrando sozinha
                              sob um arco invisível
e os pecados desaparecem como ratos flagrados.
          Meu coração causa pasmo porque bate
          e tem sangue nele e vai parar um dia
          e vira um tambor patético
                    se falas no meu ouvido:
                              “Não esqueço você.”
Manchas de luz na parede,
                    uma jarra pequena
                              com três rosas de plástico.
Tudo no mundo é perfeito
                    e a morte é amor.


*


Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
por muito tempo morámos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


*


Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo. 
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


*


O amor no éter

Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniços na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escavar-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.


*


A formalística

O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam fosforescer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
‘Deus é impecável.’
As rãs pularam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.


*


Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


*






Adélia Prado 
(Divinópolis, Minas Gerais, Brasil; 1935)





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