Mário Quintana (Brasil)

bilhete com endereço

num amor à distância,
num tele-amor?!
num amor de longe...
eu sonho é um amor pertinho
um amor juntinho...
e, depois,
esse calor humano é uma coisa
que todos - até os executivos - têm.
é algo que acaba se perdendo no ar,
no vento
no frio que agora faz...
escuta!
o que eu quero,
o que eu amo,
o que desejo em ti

é o teu calor animal!

*

o poema é uma pedra no abismo,
o eco do poema desloca os perfis:
para o bem das águas e das almas
assassinemos o poeta.

*

a vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida.
  
*

os poemas

os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
e olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


*

a rua dos cataventos (III)

quando os meus olhos de manhã se abriram,
fecharam-se de novo, deslumbrados:
uns peixes, em reflexos doirados,
voavam na luz: dentro da luz sumiram-se…

rua em rua, acenderam-se os telhados.
num claro riso as tabuletas riram.
e até no canto onde os deixei guardados
os meus sapatos velhos refloriram.

quase que eu saio voando céu em fora!
evitemos, Senhor, esse prodígio…
as famílias, que haviam de dizer?

nenhum milagre é permitido agora…
e lá se iria o resto de prestígio
que no meu bairro eu inda possa ter…


*

A Arte de Ser Bom

Sê bom. Mas ao coração
Prudência e cautela ajunta.
Quem todo de mel se unta,
Os ursos o lamberão.


*

Imagem

Haverá ainda, no mundo, coisas tão simples e tão puras como a água bebida na concha das mãos?

*




O poema

Um poema como um gole d'água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

*

Sinônimos

Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos perfeitos: "nunca" e "sempre".


*

O poema

O poema é um objeto súbito:
Os outros objetos já existiam...


*

a verdadeira arte de viajar

a gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

*

ela

mas que haverá com a Lua, que, sempre que a gente olha, é com um novo espanto?

*

arte poética

esquece todos os poemas que fizeste.
que cada poema seja o número um.
  
*
  
relógio

o mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.
  
*
  
o humilde tesouro

ah, nem queiras saber... a vida é preciosa como um pão roubado!
  
*




sempre


jamais se saberá com que meticuloso cuidado
veio o Todo e apagou o vestígio de Tudo
e
quando nem mais suspiros havia
ele surgiu de um salto
vendendo súbitos espanadores de todas as cores!

*




poeminha do contra


todos estes que aí estão 
atravancando o meu caminho, 
eles passarão. 
eu passarinho!



*






    Mário Quintana 
    (Rio Grande do Sul, Brasil, 1906-1994)

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