Mário Faustino (Brasil)
Legenda
No princípio
Houve treva bastante para o
espírito
Mover-se livremente à flor do
sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para
escutar-se
O germinar atroz de uma
desgraça
Maquinada no horror do
meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão
severa
Que se estendia a queda de uma
lágrima
Das frondes dos heróis de cada
dia.
Havia então mais sombra em
nossa via.
Menos fragor na farsa da
agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro brada e
atira
Jorros de luz na fuga de meu
dia —
e mudo sou para contar-te,
amigo,
O reino, a lenda, a glória
desse dia.
*
Soneto II
Necessito de um ser, um ser
humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal,
arcano
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o
dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do
desumano
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu
abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e
lasso
Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao
meu lado
Um ser profundo e aberto, um
ser amado.
*
Soneto
Antigo
Esse estoque de amor que
acumulei
Ninguém veio comprar a preço
justo.
Preparei meu castelo para um
rei
Que mal me olhou, passando, e a
quanto custo.
Meu tesouro amoroso há muito as
traças
Comeram, secundadas por
ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se
põe
Sozinho. Agora vou por meus
infernos
Sem fantasma buscar entre
fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre
eternos
Desertos sem retorno, onde
olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o
rastro
Que até aqui deixei, seguindo
um astro.
*
Carpe
Diem
Que faço deste dia, que me
adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da
hora
Vermelha de furtar-se ao meu
festim?
Ou colocá-lo em música, em
palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol
lavra?
Força é guardá-lo em mim, que
um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao
leito
Da noite precedente o leva,
feito
Escravo dessa fêmea a quem
fugira
Por mim, por minha voz e minha
lira.
(Mas já de sombras vejo que se
cobre
Tão surdo ao sonho de ficar —
tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte
— mora,
De traição foi feito: vai-se
embora.)
*
Vida
toda linguagem
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez
verso,
geralmente sem qualquer
adjetivo,
coluna sem ornamento,
geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um
verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a
perfeição
eterna do período, talvez
verso,
talvez interjetivo, verso,
verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua
compassiva
o sangue que criança espalhará
– oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte
adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo,
verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que
repetem,
contra negras janelas,
cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas
trajetórias
Vida toda linguagem –
como todos
sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e
anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os
vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos
terraços do inverno,
/ contra a chuva,
tenta fazê-la eterna – como se
lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
*
Mário Faustino
(Teresina, Brasil - Lima, Peru; 1930-1962)
(Teresina, Brasil - Lima, Peru; 1930-1962)