Carlos de Oliveira (Portugal)
Sobre
o lado esquerdo
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E
então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa
insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: "o melhor é voltar-me para o
lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais
gasta do meu corpo, esmagar o coração."
*
3. Soneto
Acusam-me
de mágoa e desalento,
como
se toda a pena dos meus versos
não
fosse carne vossa, homens dispersos,
e
a minha dor a tua, pensamento.
Hei-de
cantar-vos a beleza um dia,
quando
a luz que não nego abrir o escuro
da
noite que nos cerca como um muro,
e
chegares a teus reinos, alegria.
Entretanto,
deixai que me não cale:
até
que o muro fenda, a treva estale,
seja
a tristeza o vinho da vingança.
A
minha voz de morte é a voz da luta:
se
quem confia a própria dor perscruta,
maior
glória tem em ter esperança.
*
Sono
Dormir
mas
o sonho
repassa
duma
insistente dor
a
lembrança
da
vida
água
outra vez bebida
na
pobreza da noite:
e
assim perdido
o
sono
o
olvido
bates,
coração, repetes
sem
querer
o
dia.
*
Infância
Sonhos
enormes
como cedros
que
é preciso
trazer
de longe
aos
ombros
para
achar
no
inverno da memória
este
rumor
de
lume:
o
teu perfume,
lenha
da
melancolia.
*
Rumor de água
Rumor
de água
na
ribeira ou no tanque?
O
tanque foi na infância
minha
pureza refractada.
A
ribeira secou no verão
Rumor
de água
no
tempo e no coração.
Rumor
de nada.
*
Legenda
para
aquela estrela
azul
e
fria
que
me apontaste
já
de madrugada:
amar
é
entristecer
sem
corrompermos
nada.
*
Estalactite
IV
Localizar
na
frágil espessura
do
tempo,
que
a linguagem
pôs
em
vibração
o
ponto morto
onde
a velocidade
se
fractura
e
aí
determinar
com
exactidão
o
foco
do
silêncio.
VI
Algures
o
poema sonha
o
arquétipo
do
voo
inutilmente
porque
repete
apenas
o
signo, o desenho
do
Outono
aéreo
onde
se perde a asa
quando
vier
o
instante
de
voar
VIII
Caem
do
céu calcário,
acordam
flores
milénios
depois,
rolam
de verso
em
verso
fechadas
como
gotas,
e
ouve-se
ao
fim da página
um
murmúrio
orvalhado.
*
Carlos de Oliveira
(Belém do Pará, Brasil; Lisboa, Portugal; 1921-1981)
(Belém do Pará, Brasil; Lisboa, Portugal; 1921-1981)