Manuel Bandeira (Brasil)
Andorinha
Andorinha
lá fora está dizendo:
—
“Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha,
andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei
a vida à toa, à toa…
*
Céu
a
criança olha
para
o céu azul.
levanta
a mãozinha.
quer
tocar o céu.
não
sente a criança
que
o céu é ilusão:
crê
que o não alcança,
quando
o tem na mão.
*
Arte
de amar
Se
queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A
alma é que estraga o amor.
Só
em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não
noutra alma.
Só
em Deus - ou fora do mundo.
As
almas são incomunicáveis.
Deixa
o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque
os corpos se entendem, mas as almas não.
*
O último poema
Assim
eu quereria o meu último poema.
Que
fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que
fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que
tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
*
Porquinho-da-Índia
Quando
eu tinha seis anos
Ganhei
um porquinho-da-índia.
Que
dor de coração eu tinha
Porque
o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava
ele pra sala
Pra
os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele
não se importava:
Queria
era estar debaixo do fogão.
Não
fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
-
O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
*
Neologismo
Beijo
pouco, falo menos ainda.
Mas
invento palavras
Que
traduzem a ternura mais funda
E
mais cotidiana.
Inventei,
por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro,
Teodora.
*
Poética
Estou
farto do lirismo comedido
Do
lirismo bem comportado
Do
lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo
e manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou
farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o
cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo
os puristas
Todas
as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas
as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos
os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou
farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De
todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De
resto nã é lirismo
Será
contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com
cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
agradar
às mulheres, etc.
Quero
antes o lirismo dos loucos
O
lirismo dos bêbados
O
lirismo difícil e pungente dos bêbados
O
lirismo dos clowns de Shakespeare
-
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
*
A estrela
Vi
uma estrela tão alta,
Vi
uma estrela tão fria!
Vi
uma estrela luzindo
Na
minha vida vazia.
Era
uma estrela tão alta!
Era
uma estrela tão fria!
Era
uma estrela sozinha
Luzindo
no fim do dia.
Por
que da sua distância
Para
a minha companhia
Não
baixava aquela estrela?
Por
que tão alta luzia?
E
ouvi-a na sombra funda
Responder
que assim fazia
Para
dar uma esperança
Mais
triste ao fim do meu dia.
*
A morte absoluta
Morrer.
Morrer
de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer
sem deixar o triste despojo da carne,
a
exangue máscara de cera,
cercada
de flores,
que
apodrecerão – felizes! – num dia,
banhada
de lágrimas
nascidas
menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer
sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas
que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer
sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
a
lembrança de uma sombra
em
nenhum coração, em nenhum pensamento,
em
nenhuma epiderme.
Morrer
tão completamente
que
um dia ao lerem o teu nome num papel
perguntem:
"Quem foi?..."
Morrer
mais completamente ainda,
sem
deixar sequer esse nome.
*
Desencanto
Eu
faço versos como quem chora
De
desalento… de desencanto…
Fecha
o meu livro, se por agora
Não
tens motivo nenhum de pranto.
Meu
verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza
esparsa… remorso vão…
Dói-me
nas veias. Amargo e quente,
Cai,
gota a gota, do coração.
E
nestes versos de angústia rouca,
Assim
dos lábios a vida corre,
Deixando
um acre sabor na boca.
-
Eu faço versos como quem morre.
*
Madrigal
Melancólico
O
que eu adoro em ti
Não
é a tua beleza
A
beleza é em nós que existe
A
beleza é um conceito
E
a beleza é triste
Não
é triste em si
Mas
pelo que há nela
De
fragilidade e incerteza
O
que eu adoro em ti
Não
é a tua inteligência
Não
é o teu espírito sutil
Tão
ágil e tão luminoso
Ave
solta no céu matinal da montanha
Nem
é a tua ciência
Do
coração dos homens e das coisas.
O
que eu adoro em ti
Não
é a tua graça musical
Sucessiva
e renovada a cada momento
Graça
aérea como teu próprio momento
Graça
que perturba e que satisfaz
O
que eu adoro em ti
Não
é a mãe que já perdi
E
nem meu pai
O
que eu adoro em tua natureza
Não
é o profundo instinto matinal
Em
teu flanco aberto como uma ferida
Nem
a tua pureza. Nem a tua impureza.
O
que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O
que eu adoro em ti é a vida!
*
O
exemplo das rosas
Uma
mulher queixava-se do silêncio do amante:
-
Já não gostas de mim, pois não encontras palavras para me louvar!
Então
ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio:
-
Não será insensato pedir a esta rosa que fale?
Não
vês que ela se dá toda no seu perfume?
*
Belo
Belo
Belo
belo belo,
Tenho
tudo quanto quero.
Tenho
o fogo de constelações extintas há milênios.
E
o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.
A
aurora apaga-se,
E
eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O
dia vem, e dia adentro
Continuo
a possuir o segredo grande da noite.
Belo
belo belo,
Tenho
tudo quanto quero.
Não
quero o êxtase nem os tormentos.
Não
quero o que a terra só dá com trabalho.
As
dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os
anjos não compreendem os homens.
Não
quero amar,
Não
quero ser amado.
Não
quero combater,
Não
quero ser soldado.
-
Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
*
O
impossível carinho
Escuta,
eu não quero contar-te o meu desejo
Quero
apenas contar-te a minha ternura
Ah
se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu
te pudesse repor
-
Eu soubesse repor -
No
coração despedaçado
As
mais puras alegrias de tua infância!
*
Manuel Bandeira
(Recife, Pernambuco; Rio de Janeiro; Brasil; 1886-1968)
(Recife, Pernambuco; Rio de Janeiro; Brasil; 1886-1968)