Mia Couto (Moçambique)
árvore
cego
de ser raiz
imóvel
de me ascender caule
múltiplo
de ser folha
aprendo
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo
*
tristeza
a minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
a minha tristeza
é a do astrónomo cego.
*
beijo
não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
o lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.
*
a adiada enchente
velho, não.
entardecido, talvez.
antigo, sim.
me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
e eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
*
pequeninura do morto e do vivo
o morto
abre a terra: encontra um ventre
o vivo
abre a terra: descobre um seio
*
Mia Couto
(Beira, Moçambique; 1955)
(Beira, Moçambique; 1955)