Mário Cesariny (Portugal)
Faz-se
luz
Faz-se
luz pelo processo
de
eliminação de sombras
ora
as sombras existem
as
sombras têm exaustiva vida própria
não
dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente
amantes loucamente amadas
e
espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que
se introduzem pelo bico nos olhos do homem
por
outro lado a sombra dita a luz
não
ilumina realmente os objectos
os
objectos vivem às escuras
numa
perpétua aurora surrealista
com
a qual não podemos contactar
senão
como amantes
de
olhos fechados
e
lâmpadas nos dedos e na boca
*
Lembra-te
Lembra-te
que
todos os momentos
que
nos coroaram
todas
as estradas
radiosas
que abrimos
irão
achando sem fim
seu
ansioso lugar
seu
botão de florir
o
horizonte
e
que dessa procura
extenuante
e precisa
não
teremos sinal
senão
o de saber
que
irá por onde fomos
um
para o outro
vividos
*
De
Profundis Amadus
Ontem
às
onze
fumaste
um
cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos
para perder
todos
os teus eléctricos
os
meus
estavam
perdidos
por
natureza própria
Andámos
dez
quilómetros
a
pé
ninguém
nos viu passar
excepto
claro
os
porteiros
é
da natureza das coisas
ser-se
visto
pelos
porteiros
Olha
como
só tu sabes olhar
a
rua os costumes
O
público
o
vinco das tuas calças
está
cheio de frio
é
há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não
faz mal abracem-me
os
teus olhos
de
extremo a extremo azuis
vai
ser assim durante muito tempo
decorrerão
muitos séculos antes de nós
mas
não te importes
muito
nós
só temos a ver
com
o presente
perfeito
corsários
de olhos de gato intransponível
maravilhados
maravilhosos únicos
nem
pretérito nem futuro tem
o
estranho verbo nosso
*
Movimento
movimento
de alma
silêncio,
emoção
de
doçura meia,
essa
tua palma
sobre
a minha mão
o
que tem que eu leia?
para
lá da floresta
onde
as coisas são
sem
minha licença,
mais
linear que esta
confusa
razão
da
tua presença
não
há outro sim
que
não tem dizer
e
é mais movimento?
qualquer
coisa assim
como
um tempo sem fim
como
um espaço sem tempo
*
Em
Todas as Ruas te Encontro
Em
todas as ruas te encontro
em
todas as ruas te perco
conheço
tão bem o teu corpo
sonhei
tanto a tua figura
que
é de olhos fechados que eu ando
a
limitar a tua altura
e
bebo a água e sorvo o ar
que
te atravessou a cintura
tanto
tão perto tão real
que
o meu corpo se transfigura
e
toca o seu próprio elemento
num
corpo que já não é seu
num
rio que desapareceu
onde
um braço teu me procura
Em
todas as ruas te encontro
em
todas as ruas te perco
*
Voz
numa pedra
Não
adoro o passado
não
sou três vezes mestre
não
combinei nada com as furnas
não
é para isso que eu cá ando
decerto
vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto
fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma
nenhuma palavra está completa
nem
mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim
também eu nunca te direi o que sei
a
não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento
Não
digo como o outro: sei que não sei nada
sei
muito bem que soube sempre umas coisas
que
isso pesa
que
lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando
ser ele o agente supremo
do
coração do mundo
vaso
de liberdade expurgada do mênstruo
rosa
viva diante dos nossos olhos
Ainda
longe longe a cidade futura
onde
“a poesia não mais ritmará a acção
porque
caminhará adiante dela”
Os
pregadores de morte vão acabar?
Os
segadores do amor vão acabar?
A
tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me
então aquele canivete
porque
há imenso que começar a podar
passa
não me olhes como se olha um bruxo
detentor
do milagre da verdade
“a
machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão ao sol coisa
nenhuma”
nada
está escrito afinal
*
You
are welcome to Elsinore
Entre
nós e as palavras há metal fundente
entre
nós e as palavras há hélices que andam
e
podem dar-nos a morte
violar-nos tirar
do
mais fundo de nós o mais útil segredo
entre
nós e as palavras há perfis ardentes
espaços
cheios de gente de costas
altas
flores venenosas portas por abrir
e
escadas e ponteiros e crianças sentadas
à
espera do seu tempo e do seu precipício
Ao
longo da muralha que habitamos
há
palavras de vida há palavras de morte
há
palavras imensas, que esperam por nós
e
outras, frágeis, que deixaram de esperar
há
palavras acesas como barcos
e
há palavras homens, palavras que guardam
o
seu segredo e a sua posição
Entre
nós e as palavras, surdamente,
as
mãos e as paredes de Elsenor
E
há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras
que nos sobem ilegíveis à boca
palavras
diamantes palavras nunca escritas
palavras
impossíveis de escrever
por
não termos connosco cordas de violinos
nem
todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e
os braços dos amantes escrevem muito alto
muito
além do azul onde oxidados morrem
palavras
maternais só sombra só soluço
só
espasmos só amor só solidão desfeita
Entre
nós e as palavras, os emparedados
e
entre nós e as palavras, o nosso dever falar
*
Mário Cesariny
(Lisboa, Portugal; 1923-2006)
(Lisboa, Portugal; 1923-2006)