Poemas de Herberto Helder
NO SORRISO LOUCO DAS MÃES
No
sorriso louco das mães batem as leves
gotas
de chuva. Nas amadas
caras
loucas batem e batem
os
dedos amarelos das candeias.
Que
balouçam. Que são puras.
Gotas
e candeias puras. E as mães
aproximam-se
soprando os dedos frios.
Seu
corpo move-se
pelo
meio dos ossos filiais, pelos tendões
e
órgãos mergulhados,
e
as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas
cabeças filiais.
Sentam-se,
e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo
tudo,
e
queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto
o amor é cada vez mais forte.
E
bate-lhes nas caras, o amor leve.
O
amor feroz.
E
as mães são cada vez mais belas.
Pensam
os filhos que elas levitam.
Flores
violentas batem nas suas pálpebras.
Elas
respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E
a sua cara está no meio das gotas particulares
da
chuva,
em
volta das candeias. No contínuo
escorrer
dos filhos.
As
mães são as mais altas coisas
que
os filhos criam, porque se colocam
na
combustão dos filhos, porque
os
filhos estão como invasores dentes-de-leão
no
terreno das mães.
E
as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e
atiram-se, através deles, como jactos
para
fora da terra.
E
os filhos mergulham em escafandros no interior
de
muitas águas,
e
trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e
na agudeza de toda a sua vida.
E
o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e
através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas
chávenas e nos garfos.
E
através da mãe o filho pensa
que
nenhuma morte é possível e as águas
estão
ligadas entre si
por
meio da mão dele que toca a cara louca
da
mãe que toca a mão pressentida do filho.
E
por dentro do amor, até somente ser possível
amar
tudo,
e
ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
*
SOBRE UM POEMA
Um
poema cresce inseguramente
na
confusão da carne,
sobe
ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez
como sangue
ou
sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora
existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou
os bagos de uva de onde nascem
as
raízes minúsculas do sol.
Fora,
os corpos genuínos e inalteráveis
do
nosso amor,
os
rios, a grande paz exterior das coisas,
as
folhas dormindo o silêncio,
as
sementes à beira do vento,
-
a hora teatral da posse.
E
o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E
já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável,
único,
invade
as órbitas, a face amorfa das paredes,
a
miséria dos minutos,
a
força sustida das coisas,
a
redonda e livre harmonia do mundo.
-
Em baixo o instrumento perplexo ignora
a
espinha do mistério.
-
E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
*
O
AMOR EM VISITA
Dai-me
uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e
seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei
a noite.
Dai-me
uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus
ombros beijarei, a pedra pequena
do
sorriso de um momento.
Mulher
quase incriada, mas com a gravidade
de
dois seios, com o peso lúbrico e triste
da
boca. Seus ombros beijarei.
Cantar?
Longamente cantar.
Uma
mulher com quem beber e morrer.
Quando
fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o
atravessar trespassada por um grito marítimo
e
o pão for invadido pelas ondas -
seu
corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele
- imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de
alegria e de impudor.
Seu
corpo arderá para mim
sobre
um lençol mordido por flores com água.
Em
cada mulher existe uma morte silenciosa.
E
enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os
bordões da melodia,
a
morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se
em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher
nua sob
as
mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher
de pés no branco, transportadora
da
morte e da alegria.
Dai-me
uma mulher tão nova como a resina
e
o cheiro da terra.
Com
uma flecha em meu flanco, cantarei.
E
enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei
seu sorriso ardendo,
suas
mamas de pura substância,
a
curva quente dos cabelos.
Beberei
sua boca, para depois cantar a morte
e
a alegria da morte.
Dai-me
um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço
de planta,
onde
uma chama comece a florir o espírito.
À
tona da sua face se moverão as águas,
dentro
da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da
morte.
Nem
sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada
de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço
o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem
pungente
com
seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações
de sal e de brandura.
Entontece
meu hálito com a sombra,
tua
boca penetra a minha voz como a espada
se
perde no arco.
E
quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola,
a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se
desfibra - invento para ti a música, a loucura
e
o mar.
Toco
o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a
inspiração.
E
eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou
para ti com a beleza oculta,
o
corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo:
eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se,
tuas mãos descobrem
a
sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera
e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo
que se espera para as coisas, para o tempo -
eu
sou a beleza.
Inteira,
tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus
olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.
Então
sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que
me vem o fogo.
Não
há gesto ou verdade onde não dormissem
tua
noite e loucura, não há vindima ou água
em
que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo:
olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu
dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a
carne transcendente. E em ti
principiam
o mar e o mundo.
Minha
memória perde em sua espuma
o
sinal e a vinha.
Plantas,
bichos, águas cresceram como religião
sobre
a vida - e eu nisso demorei
meu
frágil instante. Porém
teu
silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal,
e tudo circula entre teu sopro
e
teu amor. As coisas nascem de ti
como
as luas nascem dos campos fecundos,
os
instantes começam da tua oferenda
como
as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais
inocente que as árvores, mais vasta
que
a pedra e a morte,
a
carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge
a aurora pobre,
insiste
de violência a imobilidade aquática.
E
os astros quebram-se em luz
sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os
bichos erguem seus olhos dementes,
arde
a madeira - para que tudo cante
pelo
teu poder fechado.
Com
minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu
sei quanto és o íntimo pudor
e
a água inicial de outros sentidos.
Começa
o tempo onde a mulher começa,
é
sua carne que do minuto obscuro e morto
se
devolve à luz.
Na
morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com
uma imagem.
Espero
o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de
sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma
ideia de pedra e de brancura.
És
tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que
te alimentas de desejos puros.
E
une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a
sombra canta baixo.
Começa
o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde
a beleza que transportas como um peso árduo
se
quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado
e vivo.
-
Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei
tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei
minha voz confundida com a tua.
Oh
teoria de instintos, dom de inocência,
taça
para beber junto à perturbada intimidade
em
que me acolhes.
Começa
o tempo na insuportável ternura
com
que te adivinho, o tempo onde
a
vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o
encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua
e cara, o que pressente o coração
engasta
seu contorno de lume ao longe.
Bom
será o tempo, bom será o espírito,
boa
será nossa carne presa e morosa.
-
Começa o tempo onde se une a vida
à
nossa vida breve.
Estás
profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina,
imagem fechada em sua força e pungência.
E
o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em
torno das violas, a morte que não beijo,
a
erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o
renova
num
estilo de prata viva.
Quando
o fruto empolga um instante a eternidade
inteira,
eu estou no fruto como sol
e
desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz
de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os
luminosos cálices
das
nuvens florescem, a resina tinge
a
estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E
estás em mim como a flor na ideia
e
o livro no espaço triste.
Se
te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a
cevada pura, de ti viriam cheias
minhas
mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em
minha espuma,
que
frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na
matéria
da
minha boca, e serás uma árvore
dormindo
e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar
teus olhos será morrer pela esperança.
Ver
no aro de fogo de uma entrega
tua
carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será
criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do
meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a
tua face
se
encha de um minuto sobrenatural,
devo
murmurar cada coisa do mundo
até
que sejas o incêndio da minha voz.
As
águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem
da carne aspiram longamente
a
nossa vida. As sombras que rodeiam
o
êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu
bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso
no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada,
o mar, os centauros
do
crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por
isso é que estamos morrendo na boca
um
do outro. Por isso é que
nos
desfazemos no arco do verão, no pensamento
da
brisa, no sorriso, no peixe,
no
cubo, no linho,
no
mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.
Beijo
o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o
perfume da tua noite.
Murmuro
os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e
branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e
a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao
círculo de meu ardente pensamento.
Onde
está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre
o teu sorriso imenso.
Em
cada espasmo eu morrerei contigo.
E
peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das
urzes, um silêncio, uma palavra;
traz
da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh
amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa
de madeira do planalto,
rios
imaginados,
espadas,
danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas
da noite. Ó meu amor,
em
cada espasmo eu morrerei contigo.
De
meu recente coração a vida inteira sobe,
o
povo renasce,
o
tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a
flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de
crepúsculos e crateras.
Ó
pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta
pela noite equilibrada, imponderável -
em
cada espasmo eu morrerei contigo.
E
à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre
a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da
tua entrega. Bichos inclinam-se
para
dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra
o ar. Tua voz canta
o
horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o
lento desejo do teu corpo.
Beijarei
em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu
morrerei contigo.
*
AOS
AMIGOS
Amo
devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os
amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com
os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não
os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro
do fogo.
—
Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos
um lugar de silêncio.
De
paixão.
*
li
algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando
alguém morria perguntavam apenas:
tinha
paixão?
quando
alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se
tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo
talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo
corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão
pela paixão,
tinha?
e
então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se
posso morrer gregamente,
que
paixão?
os
grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os
grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens
e mulheres perdem a aura
na
usura,
na
política,
no
comércio,
na
indústria,
dedos
conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos
objectos entrando e saindo
dos
dez tão poucos dedos para tantos
objectos
do mundo
¿e
o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode
manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e
fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra
soprada a que forno com que fôlego,
que
alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem
de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham
muito alto a música e que eu dance,
fluido,
infindável,
apanhado
por toda a luz antiga e moderna,
os
cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me
perdesse nela,
a
paixão grega
*
(A CARTA DA PAIXÃO)
Esta
mão que escreve a ardente melancolia
da
idade
é
a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que
à imagem do mundo aberta de têmpora
a
têmpora
ateia
a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a
sua queimadura desde os seus recessos negros
onde
se formam
as
estações até ao cimo,
nas
sedas que se escoam com a largura
fluvial
da
luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e
o silêncio todo branco.
Os
dedos.
A
montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se:
O mel escurece dentro da veia
jugular
talhando
a
garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a
lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras,
essa lua
tece
as ramas de um sangue mais salgado
e
profundo. E o marfim amadurece na terra
como
uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz
para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo.
A idade que escrevo
escreve-se
num
braço fincado em ti, uma veia
dentro
da
tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da
figura cavada
no
espelho. Ou ainda a fenda
na
fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te
a espaçosa
desarrumação
das imagens. E trabalha em ti
o
suspiro do sangue curvo, um alimento
violento
cheio
da
luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde
a raiz
dos
braços a força
manobra
os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada,
a límpida
ferida
que me atravessa desde essa tua leveza
sombria
como uma dança até
ao
poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação
é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é
tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do
teu vestido.
As
palavras que escrevo correndo
entre
a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E
o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A
paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente
de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no
cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os
dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos
quartos.
É
de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre
os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago
das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo
meio
o
abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um
pouco loucas
engolfadas,
entre as mãos sumptuosas.
A
doçura mata.
A
luz salta às golfadas.
A
terra é alta.
Tu
és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes
na minha insónia como o aroma entre os tendões
da
madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida
secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas,
luzimos de um para o outro
nas
trevas.
*
NARRAÇÁO
DE UM HOMEM EM MAIO
Estou
deitado no nome: maio, e sou uma pessoa
que
saiu
violenta
e violentamente para o campo.
Um
homem deitado entre os malmequeres
rotativos
do mês atraves-
sado
pelo movimento.
É
a noite aproximada com o livro
dentro.
Deitado sobre bocados
de
estrelas no pensamento.
Era
a casa absorvida na manhã
embatente.
Livro
da poesia arrebatada. Poesia
da
mulher emparedada no amor
e
o homem emparedado na destruição
do
amor.
É
agora o leitor com a atenção corrupta
sobre
o livro.
O
livro que arde nos ossos
do
leitor afogado no poema arrebatado.
Estou
estendido como autor na ligeira
palavra
que a noite molha
e
os ventos sopram como se sopra
urna
brasa.
Um
homem que saiu de casa, com toda
a
magnífica violência do amor.
E
o tempo revelador.
Agora
inteligente deste lado,
contra
o lado exemplar de maio aglomerado.
Espécie
de primavera comburente.
A
dor total. O livro.
O
pensamento do amor. A
experiência.
E
a vida ardente do autor.
Deitei-me
também no campo
de
outras coisas. Com discurso. Com
rigoroso
segredo.
Vi
o caçador levantar o arco-íris
e
atirar, fechada, a morte
ao
cabrito primaveril.
E
tudo calei como experiência
de
um sono inspirado.
Vi
a ressurreição, maio
infestado.
Ouvi
passar
o ciclista da primavera
sobre
o ruído da ressurreição.
Conheci
a existência do roubador, o ciclista
que
penetra no exemplo da fábula.
Estou
deitado em meio campo
de
urna espécie de despedida.
Meio
campo de maio, e outro meio
de
pessoalíssima vida.
São
coisas que já não estão mais
do
que na maturidade da idade.
Fiz
comércio. Indústria. Dor.
A
garganta lavrada pelo canto.
Ia
a bicicleta com o seu poeta que punha a mão
no
poema da bicicleta.
E
iam todos — poema, bicicleta, poeta e mão —
por
sobre o coração da terra e a ressurreição
da
primavera. Ganhei
a
minha idade concluída.
Cacei.
Ou plantei. Ou cortei.
A
vida vida.
Havia
o movimento com a sua bicicleta
e
a canção com o seu poeta.
A
vida merecida.
Vejo
ervas movimentadas e estrelas paradas.
E
a consumação das coisas universais.
Geram-se
de novo as coisas
universais.
A pureza.
A
natureza da pureza.
A
própria natureza das coisas universais.
Da
dor sei o amor.
O
amor do ardor. Sei mais
do
que posso saber da matéria do amor.
Fico
deitado no campo revolucionário:
a
paciente brutalidade da primavera
é
como a brutalidade
delicada
da paixão.
O
violentamente demorado amor,
e
a sua ressurreição.
Já
estivera deitado ao lado das mulheres.
Elas
paravam completamente
como
caçadores ou bichos fascinados.
Não
tinham pensamento nem idade.
Era
a força do corpo. O movimento.
Estou
neste lado desse lado
do
corpo. Sei o poema
do
conhecimento informulado.
Respira
monotonamente urna estrela
entre
os ossos.
Estrela
levemente destruída.
Roída
pelo louco rato lírico
da
idade. Estou no pensamento.
Parado
no movimento de uma vida.
Mexo
a boca, mexo os dedos, mexo
a
idéia da experiência.
Não
mexo no arrependimento.
Pois
o corpo é interno e eterno
do
seu corpo.
Não
tenho inocência, mas o dom
de
toda urna inocência.
E
lentidão ou harmonia.
Poesia
sem perdão ou esquecimento.
Idade
de poesia.
*
FONTE - I
Ela
é a fonte. Eu posso saber que é
a
grande fonte
em
que todos pensaram. Quando no campo
se
procurava o trevo, ou em silêncio
se
esperava a noite,
ou
se ouvia algures na paz da terra
o
urdir do tempo ---
cada
um pensava na fonte. Era um manar
secreto
e pacífico.
Uma
coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.
Ninguém
falava dela, porque
era
imensa. Mas todos a sabiam
como
a teta. Como o odre.
Algo
sorria dentro de nós.
Minhas
irmãs faziam-se mulheres
suavemente.
Meu pai lia.
Sorria
dentro de mim uma aceitação
do
trevo, uma descoberta muito casta.
Era
a fonte.
Eu
amava-a dolorosa e tranquilamente.
A
lua formava-se
com
uma ponta subtil de ferocidade,
e
a maçã tomava um princípio
de
esplendor.
Hoje
o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se
e renasceu.
Hoje
sei permanentemente que ela
é
a fonte.
*
SE HOUVESSE DEGRAUS NA TERRA...
Se
houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu
subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No
céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E
que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e
à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei
uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei
um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui
lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e
a fímbria do mar, e o meio do mar,
e
vermelhas se volveram as asas da águia
que
desceu para beber,
e
metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito
seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma
maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram
os rapazes à procura da espada,
e
as raparigas correram à procura da mantilha,
e
correram, correram as crianças à procura da maçã.
*
Herberto Helder
(Lisboa –
Cascais; Portugal; 1930 – 2015)