Alexandre O'Neill (Portugal)


O Poema Pouco Original do Medo 


O medo vai ter tudo 
pernas 
ambulâncias 
e o luxo blindado 
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja 
mãozinhas cautelosas 
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no tecto 
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera 
sessões contínuas de espiritismo 
milagres 
cortejos 
frases corajosas 
meninas exemplares 
seguras casas de penhor 
maliciosas casas de passe 
conferências várias 
congressos muitos 
óptimos empregos 
poemas originais 
e poemas como este 
projectos altamente porcos 
heróis 
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários 
(assim assim) 
escriturários 
(muitos) 
intelectuais 
(o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com certeza a deles
Vai ter capitais 
países 
suspeitas como toda a gente 
muitíssimos amigos 
beijos 
namorados esverdeados 
amantes silenciosos 
ardentes 
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo 
tudo
(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos

Sim 
a ratos




*



Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes




*




O amor é o amor


O amor é o amor - e depois?!

vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,

cortando o mar, cortando o ar.
num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos

sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
o amor é o amor - e depois?!





*





A meu favor


A meu favor

tenho o verde secreto dos teus olhos
algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor

as paredes que insultam devagar
certo refúgio acima do murmúrio
que da vida corrente teime em vir
o barco escondido pela folhagem
o jardim onde a aventura recomeça.




*




Amigo


Mal nos conhecemos

inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso

de boca em boca,
um olhar bem limpo

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.

um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,

escrupulosos detritos?)
amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,

não o erro perseguido, explorado.
é a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!


Amigo é uma grande tarefa,

um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
amigo vai ser, é já uma grande festa!





*





E de novo, Lisboa...


E de novo, Lisboa, te remancho, 

numa deriva de quem tudo olha 
de viés: esvaído, o boi no gancho, 
ou o outro vermelho que te molha. 

Sangue na serradura ou na calçada, 

que mais faz se é de homem ou de boi? 
O sangue é sempre uma papoila errada, 
cerceado do coração que foi. 

Groselha, na esplanada, bebe a velha, 

e um cartaz, da parede, nos convida 
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha: 
dizem que o sangue é vida; mas que vida? 

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui, 

na terra onde nasceste e eu nasci? 




*



O teu nome


flor de acaso ou ave deslumbrante,

palavra tremendo nas redes da poesia,
o teu nome,como o destino,chega,
o teu nome,meu amor,o teu nome nascendo
de todas as cores do dia!




*




Mesa dos sonhos


Ao lado do homem vou crescendo 


Defendo-me da morte quando dou 

meu corpo ao seu desejo violento 
e lhe devoro o corpo lentamente 

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem 

todas as formas e começam 
todas as vidas 

Ao lado do homem vou crescendo 


E defendo-me da morte povoando 

de novos sonhos a vida.




*




Canção


Que saia a última estrela

da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios

da paciência da terra
é no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis

que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos

de pura transformação
entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem




*




Adeus Português


Nos teus olhos altamente perigosos 
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz dos ombros pura e a sombra 
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo 
à roda em que apodreço 
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira 
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta pequena dor à portuguesa 
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces 
esta roda de náusea em que giramos 
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio 
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti 




*







Alexandre O'Neill 
(Lisboa, Portugal; 1924-1986)

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