Carlos Drummond de Andrade (Brasil)
Quadrilha
João amava
Teresa que amava Raimundo
que amava
Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava
ninguém.
João foi
para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo
morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim
suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não
tinha entrado na história.
*
Deus me deu
um amor no tempo de madureza,
Deus - ou
foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e
outro agradeço, pois que tenho um amor.
*
Acordar,
viver
Como acordar
sem sofrimento?
Recomeçar
sem horror?
O sono
transportou-me
àquele reino
onde não existe vida
e eu quedo
inerte sem paixão.
Como
repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula
inconclusa,
suportar a
semelhança das coisas ásperas
de amanhã
com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me
das feridas
que rasga em
mim o acontecimento,
qualquer
acontecimento
que lembra a
Terra e sua púrpura
demente?
E mais
aquela ferida que me inflijo
a cada hora,
algoz
do inocente
que não sou?
Ninguém
responde, a vida é pétrea.
*
Chega um
tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de
absoluta depuração.
Tempo em que
não se diz mais: meu amor.
Porque o
amor resultou inútil.
E os olhos
não choram.
E as mãos
tecem apenas o rude trabalho.
E o coração
está seco.
*
Mãos
dadas
não serei o
poeta de um mundo caduco.
também não
cantarei o mundo futuro.
estou preso
à vida e olho meus companheiros
estão
taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
entre eles,
considere a enorme realidade.
o presente é
tão grande, não nos afastemos.
não nos
afastemos muito, vamos de mãos dadas.
não serei o
cantor de uma mulher, de uma história.
não direi
suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não
distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei
para ilhas nem serei raptado por serafins.
o tempo é a
minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida
presente.
*
Os homens não melhoraram
e matam-se
como percevejos.
Os
percevejos heroicos renascem.
Inabitável,
o mundo é cada vez mais habitado.
E se os
olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
*
Ausência
Por muito
tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava,
ignorante, a falta.
Hoje não a
lastimo.
Não há falta
na ausência.
A ausência é
um estar em mim.
E sinto-a,
branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e
danço e invento exclamações alegres,
porque a
ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a
rouba mais de mim.
*
Sentimental
Ponho-me a
escrever teu nome
com letras
de macarrão.
No prato, a
sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados
na mesa todos contemplam
esse
romântico trabalho.
Desgraçadamente
falta uma letra,
uma letra
somente
para acabar
teu nome!
- Está
sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava
sonhando...
E há em
todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste
país é proibido sonhar."
*
Destruição
os amantes
se amam cruelmente
e com se
amarem tanto não se vêem.
um se beija
no outro, refletido.
dois amantes
que são? dois inimigos.
amantes são
meninos estragados
pelo mimo de
amar: e não percebem
quanto se
pulverizam no enlaçar-se,
e como o que
era mundo volve a nada.
nada.
ninguém. amor, puro fantasma
que os
passeia de leve, assim a cobra
se imprime
na lembrança de seu trilho.
e eles
quedam mordidos para sempre.
deixaram de
existir, mas o existido
continua a
doer eternamente.
*
Poesia
gastei uma
hora pensando em um verso
que a pena
não quer escrever.
no entanto
ele está cá dentro
inquieto,
vivo.
ele está cá
dentro
e não quer
sair.
mas a poesia
deste momento
inunda minha
vida inteira.
*
Poema que
aconteceu
nenhum
desejo neste domingo
nenhum
problema nesta vida
o mundo
parou de repente
os homens
ficaram calados
domingo sem
fim nem começo.
a mão que
escreve este poema
não sabe o
que está escrevendo
mas é
possível que se soubesse
nem ligasse.
*
Congresso
Internacional do Medo
Provisoriamente
não cantaremos o amor,
que se
refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o
medo, que esteriliza os abraços,
não
cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe
apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo
grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos
soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o
medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o
medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois
morreremos de medo
e sobre
nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas
*
Para você
ganhar belíssimo Ano Novo
cor de
arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem
comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido
ou talvez sem sentido)
para você
ganhar um ano
não apenas
pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas
sementinhas do vir-a-ser,
novo até no
coração das coisas menos percebidas
(a começar
pelo seu interior)
novo
espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele
se come, se passeia,
se ama, se
compreende, se trabalha,
você não
precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa
expedir nem receber mensagens
(planta
recebe mensagens?
passa
telegramas?).
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para
arquivá-las na gaveta.
Não precisa
chorar de arrependido
pelas
besteiras consumadas
nem
parvamente acreditar
que por
decreto da esperança
a partir de
janeiro as coisas mudem
e seja tudo
claridade, recompensa,
justiça
entre os homens e as nações,
liberdade
com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos
respeitados, começando
pelo direito
augusto de viver.
Para ganhar
um ano-novo
que mereça
este nome,
você, meu
caro, tem de merecê-lo,
tem de
fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente,
experimente, consciente.
É dentro de
você que o Ano Novo
cochila e
espera desde sempre.
*
Quem me
acode à cabeça e ao coração
neste fim de
ano, entre alegria e dor?
Que sonho,
que mistério, que oração?
Amor.
Amor.
*
No meio
do caminho
no meio do
caminho tinha uma pedra
tinha uma
pedra no meio do caminho
tinha uma
pedra
no meio do
caminho tinha uma pedra.
nunca me
esquecerei desse acontecimento
na vida de
minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me
esquecerei que no meio do caminho
tinha uma
pedra
tinha uma
pedra no meio do caminho
no meio do
caminho tinha uma pedra.
*
As
sem-razões do amor
Eu te amo
porque te amo.
Não precisas
ser amante,
e nem sempre
sabes sê-lo.
Eu te amo
porque te amo.
Amor é
estado de graça
e com amor
não se paga.
Amor é dado
de graça,
é semeado no
vento,
na
cachoeira, no eclipse.
Amor foge a
dicionários
e a
regulamentos vários.
Eu te amo
porque não amo
bastante ou
demais a mim.
Porque amor
não se troca,
não se
conjuga nem se ama.
Porque amor
é amor a nada,
feliz e
forte em si mesmo.
Amor é primo
da morte,
e da morte
vencedor,
por mais que
o matem (e matam)
a cada
instante de amor.
*
Amar
Que pode uma
criatura senão entre criaturas, amar?
Amar e
esquecer?
Amar e
malamar
Amar,
desamar e amar
Sempre, e
até de olhos vidrados, amar?
Que pode,
pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em
rotação universal,
se não rodar
também, e amar?
Amar o que o
mar trás a praia,
O que ele
sepulta, e o que, na brisa marinha
é sal, ou
precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar
solenemente as palmas do deserto,
o que é
entrega ou adoração expectante,
e amor
inóspito, o áspero
Um vaso sem
flor, um chão de ferro, e o peito inerte,
e a rua
vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este é o
nosso destino:
amor sem
conta, distribuído pelas coisas
pérfidas ou
nulas,
doação
ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha
vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de
mais e mais amor
Amar a nossa
mesma falta de amor,
e na secura
nossa, amar a água implícita,
e o beijo
tácito e a sede infinita.
*
Procuro uma
alegria
uma mala
vazia
do final de
ano
e eis que
tenho na mão
- flor do
cotidiano -
é vôo de um
pássaro
é uma
canção.
*
Para
sempre
Por que Deus
permite
que as mães
vão-se embora?
Mãe não tem
limite,
é tempo sem
hora,
luz que não
apaga
quando sopra
o vento
e chuva
desaba,
veludo
escondido
na pele
enrugada,
água pura,
ar puro,
puro
pensamento.
morrer
acontece
com o que é
breve e passa
sem deixar
vestígio.
Mãe, na sua
graça,
é
eternidade.
por que Deus
se lembra
— mistério
profundo —
de tirá-la
um dia?
fosse eu Rei
do Mundo,
baixava uma
lei:
Mãe não
morre nunca,
mãe ficará
sempre
junto de seu
filho
e ele, velho
embora,
será
pequenino
feito grão
de milho.
*
Áporo
um inseto
cava
cava sem
alarme
perfurando a
terra
sem achar
escape.
que fazer,
exausto,
em país
bloqueado,
enlace de
noite
raiz e
minério?
eis que o
labirinto
(oh razão,
mistério)
presto se
desata:
em verde,
sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea
forma-se.
*
Verbo Ser
Que vai ser
quando crescer?
Vivem
perguntando em redor. Que é ser?
É ter um
corpo, um jeito, um nome?
Tenho os
três. E sou?
Tenho de
mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente
só principia a ser quando cresce?
É terrível,
ser? Dói? É bom? É triste?
Ser;
pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser,
Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser
quando crescer?
Sou obrigado
a? Posso escolher?
Não dá para
entender. Não vou ser.
Vou crescer
assim mesmo.
Sem ser
Esquecer.
*
O seu
santo nome
Não facilite
com a palavra amor.
Não a jogue
no espaço, bolha de sabão.
Não se
inebrie com o seu engalanado som.
Não a
empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque,
não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar
aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda
sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a
pronuncie.
*
A Bruxa
Nesta cidade
do Rio,
de dois
milhões de habitantes,
estou
sozinho no quarto,
estou
sozinho na América.
Estarei
mesmo sozinho?
Ainda há
pouco um ruído
anunciou
vida ao meu lado.
Certo não é
vida humana,
mas é vida.
E sinto a bruxa
presa na
zona de luz.
De dois
milhões de habitantes!
E nem
precisava tanto…
Precisava de
um amigo,
desses
calados, distantes,
que lêem
verso de Horácio
mas
secretamente influem
na vida, no
amor, na carne.
Estou só,
não tenho amigo,
e a essa
hora tardia
como
procurar amigo?
E nem
precisava tanto.
Precisava de
mulher
que entrasse
neste minuto,
recebesse
este carinho,
salvasse do
aniquilamento
um minuto e
um carinho loucos
que tenho
para oferecer.
Em dois
milhões de habitantes,
quantas
mulheres prováveis
interrogam-se
no espelho
medindo o
tempo perdido
até que
venha a manhã
trazer
leite, jornal e clama.
Porém a essa
hora vazia
como
descobrir mulher?
Esta cidade
do Rio!
Tenho tanta
palavra meiga,
conheço
vozes de bichos,
sei os
beijos mais violentos,
viajei,
briguei, aprendi.
Estou
cercado de olhos,
de mãos,
afetos, procuras.
Mas se tento
comunicar-me
o que há é
apenas a noite
e uma
espantosa solidão.
Companheiros,
escutai-me!
Essa
presença agitada
querendo
romper a noite
não é
simplesmente a bruxa.
É antes a
confidência
exalando-se
de um homem.
*
Carlos Drummond de Andrade
(Minas Gerais, Rio de Janeiro, Brasil; 1902-1987)
(Minas Gerais, Rio de Janeiro, Brasil; 1902-1987)