Paulo Leminski (Brasil)


ouverture la vie en close

em latim
“porta” se diz “janua”
e “janela” se diz “fenestra”
a palavra “fenestra”
não veio para o português
mas veio o diminutivo de “janua”,
“januela”, “portinha”,
que deu nossa “janela”
“fenestra” veio
mas não como esse ponto da casa
que olha o mundo lá fora,
de “fenestra”, veio “fresta”,
o que é coisa bem diversa
já em inglês
“janela” se diz “window”
porque por ela entra
o vento (“wind”) frio do norte
a menos que a fechemos
como quem abre
o grande dicionário etimológico
dos espaços interiores




*


parada cardíaca

essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
vem da zona escura
donde vem o que sinto.
sinto muito,
sentir é muito lento.



*


abaixo o além

de dia
céu com nuvens
ou céu sem

de noite
não tendo nuvens
estrela
sempre tem

quem me dera
um céu vazio
azul isento
de sentimento
e de cio



*


dor elegante

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
com se chegando atrasado
chegasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa, um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios, édens, analgésicos
não me toquem nesse dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra



*


lua crescente
o escuro cresce
a estrela sente



*


quem me dera
até para a flor no vaso
um dia chega a primavera


*


desmantelar
a máquina do amor
peça por peça
onde luzia flor e flor
não deixar nem promessa
isso sim eu faria
se pudesse
transformar em pedra fria
minha prece



*



bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas




*



pedaço de prazer
perdido
num canto do quarto escuro
inferno paraíso
vivo ou morto
te procuro



*


ameixas
ame-as
ou deixe-as



*


o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.



*


no centro
o encontro
entre meu silêncio
e o estrondo



*


acabo como começo
canções de fracasso
não fazem mais sucesso



*


eu

eu 
quando olho nos olhos 
sei quando uma pessoa 
está por dentro 
ou está por fora 

quem está por fora 
não segura 
um olhar que demora 
de dentro de meu centro 
este poema me olha


*


essa a vida que eu quero,
querida
encostar na minha
a tua ferida



*


confira
tudo que respira
conspira



*


matar, a forma mais alta de amar,
matar em nós a vontade de matar,
voltar a matar a vontade,
matar, sempre, matar,
mesmo que, para isso,
seja preciso todo o nosso amar
  

*


existe um planeta
perdido numa dobra
do sistema solar

aí é fácil confundir
sorrir com chorar

difícil é distinguir
esse planeta de sonhar



*


a vida é as vacas
que você põe no rio
para atrair as piranhas
enquanto a boiada passa



*



eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois.



*


três metades

meio dia,
um dia e meio, 
meio dia, meio noite, 
metade deste poema 
não sai na fotografia, 
metade, metade foi-se. 

mas eis que a terça metade, 
aquela que é menos dose 
de matemática verdade 
do que soco, tiro, ou coice, 
vai e vem como coisa 
de ou, de nem, ou de quase. 

como se a gente tivesse 
metades que não combinam, 
três partes, destempestades, 
três vezes ou vezes três, 
como se quase, existindo, 
só nos faltasse o talvez.



*


acabo como começo
canções de fracasso
não fazem mais sucesso


*


surpresa de ser
tão solta e tão presa
a noite dá meiavolta
e volta a ser nossa
toda a beleza que possa


*


não possa tanta distância
deixar entre nós
este sol
que se põe
entre uma onda
e outra onda
no oceano dos lençóis



*


Que leva as pessoas a ficarem juntas? A poesia seria cúmplice, desde o começo, desse sentimento que se chama amor. Eu acho que é uma coisa perfeitamente lógica, natural, porque a poesia, se vocês olharem bem, ela é o amor entre os sons e os sentimentos. Ela já é na sua substância, intrinsecamente, ela já é amor, já é aproximação, no sentido que é amor entre os sons e os sentidos, num sentido que a prosa não é. É por isso que a poesia não morre. Por que essa coisa tão inútil que não consegue sequer se transformar decentemente em mercadoria num mundo mercatório, esse mundo em que vivemos? Qualquer editor principiante sabe: poesia não vende.



*






Paulo Leminski 
(Curitiba, Paraná, Brasil, 1944-1989)

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