POEMA À (MINHA) MÃE


Aquando do evento "Recital de Poesia de Sandra Santos – 30 Anos de Vida, 30 Anos de Poesia", li este poema dedicado à minha mãe.

Escrevi este poema inédito numa residência artística em Olot, Barcelona, em 2021. Pela primeira vez, coloquei em palavras a minha ligação à minha mãe, à maternidade, à energia maternal.

É um poema em construção. Assim como a nossa relação de mãe e filha.

No vídeo acima, para além da leitura do poema, abordo temas como a família, ancestralidade, escrita, inspiração, missão e voz no mundo.

Aqui vai o poema em (des)construção:

mãe, quero morrer
sei que dizê-lo
neste tom grave
te produz susto
assombro
pois bem
há muitos anos
que o penso
que este mundo não é para mim
- ou talvez sim -
mas sem gente
talvez sem gente
eu pudesse respirar
sem pressa
ser como as nuvens
que ora vêm
que ora vão
sem pensamento
 
mãe, disse a um rapaz:
estaba pensando que
cuando pienso en ti
te siento
sin pensamiento
eu penso em morrer
como quem pensa em viver
não se pensa:
morre-se e vive-se
tudo ao mesmo tempo
tal como quando amamos
 
como distinguir quem fomos
de quem somos?
amálgama
samsara de anos e anos
 
mãe, quero morrer
posso voltar ao éter
antes de me teres?
poderás
pelas tuas mãos
devolveres-me
ao não-ser?
 
mãe, em mim doem coisas
que não podes saber
nunca o saberás
porque lassos os condutos
até ao útero
onde me furto
de te conhecer

mãe, desde o berço
que a Sombra é o meu
nome segundo
e sei – como saber –
que é a luz que lhe dá
a forma
por isso brinco dentro
desde então
ocultei-me para que não
A visses
A vissem

mãe, achas que serei uma boa mãe?
achas que serei uma boa filha
do Cosmos?
 
mãe, quantas noites não dormiste?
seria a Sombra a Insónia?
a sede de tudo conter
num só ponto
na total criação do Ser
 
mãe, eu sou a solidão do mundo
eu estou em ti
tu estás em mim
como perder é poder...
 
mãe, em mim pássaros pereceram
sem alçar voo
entregues às cinzas
do outro lado
em debandada
 
mãe, posso alcançar uma estrela
a primeira
guardando-a
não em forma
não em fumo
em requiem de nada
o céu divaga
e eis-me aqui
em sentinela
à sétima hora do dia
 
mãe, como será morar sem morada?
afinal
somos todos imigrantes
vejo o dia dissipar
perante os meus olhos
como será ser Homem
na sua própria ideia de mundo?
 
hoje, um Homem se ocupa de gente
quando é da solidão que Ele
mais se sente
cheio
 
mãe, olho o tempo
e o que me alcança
na noite
são os rasgos
bruxuleios
os regressos
em carros
a casas
em asas
aos ninhos
 
amanhã
tudo começa de novo
que bom que é
ser gente
de longe
olhando o tempo
em trânsito
fluindo
como o meu período
 
nestes dias
sem voz
invento vocabulários
como se o silêncio
não fosse
por si só
mais do que suficiente
 
mãe,
mal tu sabes que
agora
quanto mais me expando
mais também tu
te espraias
a outros patamares
de consciência
o meu despertar
é o teu despertar
assim é
 
mãe, eu quero poder Ser
quem eu posso Ser
e isso - isso -
já é tanto
já é muito
já é tudo



S.

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