POESIA JOVEM PORTUGUESA - SANDRA SANTOS, 1994
Estes são alguns dos poemas de uma fase de transição entre os 20 e os 30 anos. Poemas sobre alguns dos episódios mais marcantes da minha vida: da infância - solidão, abandono, isolamento; da adolescência - corpo, anorexia, morte; da fase adulta - amor, realidade e consciência. E tantos são os temas aqui contidos, pois cada verso é, em si mesmo, um universo.
Seguem abaixo alguns desses (uni)versos:
os 30
há de ser feita uma ode aos 30
em que tudo é descoberto
e nos deixa mais despidos
que no parto
então, adultos,
seremos de novo
só pele e esperança
que a vida, essa, nos fará
à sua imagem e semelhança
*
não há escapatória
tudo o que nos resta
é o agora
*
quando o ofício da tristeza já não te servir
dedica-te à arte de o traduzir
*
há alguma morte dentro de mim
que precisa de ser plenamente vivida
só assim poderei viver
definitivamente
em vida
*
o que falta, afinal, para além da alma-afim?
inventei – ou a vida inventou –
todo um imaginário
de amores
vencidos, por vencer
em tantas tantas latitudes
restando apenas um-eu
muitos os poemas
as partidas por digerir
ficamos imóveis
tentando ao menos recitar
as histórias anteriores a quem hoje somos
– que (nos) falta?
muito pouco, quase nada
*
dois corpos em água
como dois cristais
de outros tempos,
elementos,
leva-me para onde for
o fio / da meada
pois da noite
nada sei
tecer / é o que compete
após o dilúvio
– o esqueleto deste poema
*
corpo ao sol no alcatrão
luz a cada passada
[maior que o desejo
é o entendimento]
traçadas as rotas
que nos levam até nós
– quais as perguntas, quais as perguntas?
tu já tens as respostas
*
fora
pontos apontam para sul:
quantas árvores perdemos no horizonte?
quantas casas sem regresso?
o que vi
habita para além de mim
e é sempre a última respiração
antes de qualquer coisa superior
exercício para não me repetir:
o mundo sabe mais de nós
do que nós dele
*
tentei procurar pelo meu nome na lista de contactos
tentei conversar comigo
fazer-me entender
dizer algo que não fosse
já conhecido
repetido
demasiada tradução em matéria de emoção
não fui bem sucedida
e acho que a morte
sempre seduz mais que a vida
em matéria de noite
tentei servir-me de consolo
mas nem assim
a esta hora
milhões de almas
vivem os seus dramas
a esta hora
milhões de almas
vivem os seus dharmas
a esta hora
deveria estar a dormir
para me esquecer
de quem sou
*
são 2h da manhã
quem poderá escutar
o meu grito no silêncio?
[fará a noite
ao menos
e c o
de mim?]
são 2h da manhã
quem poderá traduzir
o intraduzível?
será o tempo
a tradução
do invisível?
são 2h da manhã
e do amanhã
nada sei
*
o prazer de comer
mas nem isso
o prazer de viajar
mas nem isso
o prazer de escrever
mas nem isso
o prazer de caminhar
mas nem isso
o prazer de conhecer
mas nem isso
o prazer de amar
mas nem isso
o prazer de viver
mas nem isso
o prazer de contemplar
mas nem isso
o prazer de sobreviver
mas nem isso
o prazer de respirar
mas nem isso
o prazer de ser
mas nem sequer isso
*
esvaziar
é uma forma de preencher
o ser
*
para se ser quem se é
é preciso prescindir-se até
de quem se acha ser
*
o que achava querer
já não quero mais
o que quero
já é outro querer
quanto querer
não é nosso
nunca foi nosso
nunca será nosso
afinal
eu quero não querer
desaprender
voltar
só a
ser
*
a vida não é o que supúnhamos dela
não é
e ainda bem
andamos a conjeturar planos
sonhos metas
quando afinal
tudo é o que é
sim, tudo é o que é
sem tirar nem pôr
fomos ambiciosos
extraordinários
quando afinal
o ordinário era o especial
o necessário
pois para bom entendedor
uma vida basta
a vida não é o que supúnhamos dela
não é
e ainda bem
andámos a projetar ilusões
insistências várias
a frustrar-nos com isto e com aquilo
a culpar outros
a desejar não ter nascido
a reclamar o nosso lugar
quando afinal
tudo cumpre um desígnio
e não somos melhores
nem piores do que ninguém
somos só quem somos
sim, somos só quem somos
e isso
já é tudo
a vida não é o que supúnhamos dela
não é
e ainda bem
*
foi preciso ir longe
para me sentir perto
foi preciso perder muito
para apreciar o momento
foi preciso abalar a fé
para restaurar a confiança
foi preciso deixar de respirar
para inspirar ainda mais fundo
foi preciso desmerecer a vida
para me reconciliar com ela
foi preciso ser fraco ou forte
para me libertar do próprio conceito
foi preciso experimentar o sofrimento
para integrar a dor a ferida a sombra
foi preciso arrepiar o caminho
para entender que a jornada é longa
foi preciso sucumbir ao abismo
para me saber sol, lua e estrela que não mingua
foi preciso rebentar por fora
para me reinventar por dentro
foi preciso ser o que sempre temi ser
para não mais temer quem sou
foi preciso tanto
para aqui chegar
e nem preciso é
ter-se sempre sido
quem se é
[ao poema
como à vida
só foi preciso
chegar]
*
a vida não é para ser entendida
a vida é primeiro para ser vivida
*
nesta hora
em que nada sei
em que tanto emana do zénite
nada dói se viver
– a vida é a cura para a morte
©️ Andreia Queirós
Sandra Santos (Barcelos, Portugal, 1994) dedica-se à poesia, escrita, tradução, revisão, ensino, arte e outros mistérios. Possui o grau de licenciatura em Línguas e Relações Internacionais (Universidade do Porto) e de mestrado em Estudos Editoriais (Universidade de Aveiro). Está envolvida em projetos de cariz social, cultural, artístico e literário. Os seus poemas e traduções estão publicados em livros, antologias, revistas e blogues em Portugal, Espanha, América Latina e Estados Unidos. O seu primeiro livro de poesia, Éter, em 2018, foi selecionado por um programa de apoio à edição e tradução do Instituto Camões e da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal para ser publicado em português e em espanhol no Brasil e no México. O seu segundo livro, Silente/En Silencio, foi publicado, em 2021, no Brasil, na editora Laranja Original, em versão bilingue português-espanhol. Os seus poemas foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, alemão e inglês. Como poeta convidada de Portugal, tem participado em várias feiras do livro, festivais literários e eventos por todo o mundo. O seu blogue: sandrasantos-ss.blogspot.com